O debate sobre a reforma política está murchando, embora pelo menos 85% do brasileiros seja a favor de mudanças profundas em nosso sistema eleitoral. É surpreendente.
Qualquer coisa que agrade a 85% da
população de qualquer país -- seja uma marca de biscoito, um deputado estilo
Tiririca, um programa de TV - costuma ser cobiçada pelas empresas, cortejada
pela publicidade, apoiada por artistas e jogadores de futebol. Imagine entrar
num clube com 100 pessoas e 85 dizem que você é um cara bacana.
Ninguém precisa de terapia, vamos
combinar.
Com a reforma, isso não acontece.
Apesar da popularidade óbvia, ela perde
força por um fator conhecido de nossa vida política. Pode representar uma
mudança de caráter histórico na construção de nossa democracia e isso assusta
muitas pessoas.
Apesar de mudanças recentes ocorridas
nos últimos anos, vivemos sob um sistema político destinado a manter e
reproduzir uma estrutura de enriquecimento fechado e desigual. As vitórias
obtidas até aqui são reais, mas podem ser revertidas com relativa facilidade
num sistema político destinado a preservar um mundo antigo. Isso porque, junto
como a desigualdade social, que é estrutural, estamos preservando a
desigualdade entre cidadãos.
A reforma só perde vigor porque não
interessa aos ricos nem aos muito ricos. São poucos, mas muito
influentes.
Por isso mesmo podem dar à reforma
política o tratamento que se dispensa ao convidado indesejado que apareceu numa
festa. Depois de cumprimentá-lo com sorrisos amarelos e tapinhas nas costas,
ele vai sendo empurrado para fora de casa sem muita cerimônia. Em voz baixa,
convidados se perguntam: "quem teve o mau gosto de trazer essa pessoa
aqui?"
Os ricos e muito ricos não querem a
reforma por um problema doloroso – para eles.
Depois de governar aquela terra
descoberta por Pedro Álvares Cabral há mais ou menos 500 anos, com uns pequenos
carnavais populares aqui e ali, descobriu-se uma coisa. Qualquer mudança a ser
feita nas regras eleitorais – a começar pelo financiamento de campanha, a
base de tudo – irá dificultar ainda mais a vida dos políticos que
defendem seus interesses.
Veja só. Pelas regras atuais, um
candidato só precisa ser amigo dos ricos e muito ricos para receber uma polpuda
ajuda financeira.
Isso sempre foi assim – quando os
ricos e muito ricos não proíbem eleições, claro – mas há três pleitos
presidenciais eles não conseguem emplacar seu candidato favorito e aquela turma
debaixo, que sempre foi tratada a pão, água e, de vez em quando, uma
bolachinha, nem dá bola para o que eles dizem ou pensam.
Pelas regras atuais, que permitem o
financiamento de campanha, os ricos e muito ricos podem se beneficiar de uma
mágica conhecida como multiplicação financeira dos votos. Seus políticos
prediletos recebem muito dinheiro, mas tanto dinheiro, que até se tornam
artificialmente competitivos. Contratam bons esquemas de marketing, oferecem
empregos para cabos eleitorais, ajudam prefeitos que depois irão ajuda-los e
assim por diante. Com dinheiro, a minoria social pode até transformar-se em
maioria eleitoral.
De seu ponto de vista, os ricos e muito
ricos tem razão em se preocupar e colocar a reforma embaixo do tapete.
Se a regra mudar, criando um
financiamento exclusivo de campanha, eles serão prejudicados. Isso porque cada
partido receberá recursos de acordo com o desempenho eleitoral de seus
candidatos. É uma forma simples e coerente: quem tem mais votos recebe mais recursos.
Bem ou mal, o que se quer é respeitar a vontade do povo.
Pode-se até criar uma cláusula de
barreira, garantindo um mínimo x para toda legenda que tenha um mínimo y de
votos.
Mas é claro que, mesmo assim, a
democracia não interessa a quem não tem votos.
E é por isso que eles tudo farão para
impedir a reforma e criticar quem trabalha por ela, mesmo que tenha apoio da
maioria dos brasileiros.
Não acho que ricos e muito ricos estão
condenados a padecer para sempre em posição minoritária em nosso sistema
político.
Podem ganhar força e até vencer
eleições, como se vê no mundo inteiro. Mas para isso seria preciso mudar, e
disputar eleições com soluções generosas de progresso econômico e melhora
social.
E isso é complicado, numa conjuntura econômica
difícil como a atual, quando essa turma só pensa em Estado Mínimo e corte de
programas sociais – ideia real escondida por trás de avaliações
alarmistas e comprovadamente falsas sobre inflação.
Seria preciso atualizar-se, num país
atravessou mudanças brutais nas duas últimas décadas, que deixaram para trás um
passado conformista e retrógrado, ancorado na preservação da desigualdade.
Por trás do combate a reforma política,
o que se esconde é um programa social, que prega a ampliação descomunal das
prerrogativas da minoria. É isso e só isso.
“Voz das ruas”?
“Monstro”?
Os ricos e muito ricos já mostraram que
podem valer-se de um descontentamento legítimo – com o próprio sistema
político – para estimular a baderna, numa fantasia política que só pode
vir à rua com muitas máscaras.
Seu jogo é o da irracionalidade.
Eles não suportam sequer imaginar a
possibilidade de viver num país onde cada homem vale um voto. É muito para
eles.
E é por isso, e só por isso, que tudo
farão para impedir a reforma política, mesmo que tenha o apoio de 85% da
população.
Não poderia haver demonstração mais
enfática de desprezo pela vontade da maioria.
Fonte: Revista IstoÉ.
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