Corrupção produz pobreza
Materia da Revista Veja
Estudos mostram que as maracutaias
têm efeito devastador sobre
o desenvolvimento
têm efeito devastador sobre
o desenvolvimento
Eduardo Salgado
Ilustrações Zed |
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Dois economistas do Banco Mundial, Daniel Kaufmann e Aart Kraay, elaboraram um banco de dados com indicadores de boa governança de 160 países, incluindo o combate à corrupção. De acordo com esse indicador, o Brasil ocupa a septuagésima posição. Estamos na péssima vizinhança de pobretões, como Sri Lanka, Malauí, Peru e Jamaica, e de duas ditaduras, Cuba e Bielo-Rússia. Cruzando os dados, os economistas concluíram que se a corrupção no Brasil se agravar até atingir um nível extremo, comparável ao de Angola, um dos casos mais graves, a renda per capita brasileira ficará 75% menor em oito décadas. Se, na direção contrária, alcançarmos o nível de honestidade da Inglaterra, a renda per capita ficará quatro vezes maior no mesmo período. Ou seja, calculando apenas o peso da desonestidade e desprezando todos os outros fatores que influem no desenvolvimento, chegaríamos à renda de 14.000 dólares. O raciocínio baseia-se na seguinte constatação: há 200 anos, a renda per capita não era muito diferente entre a maior parte dos países. Por que alguns conseguiram crescer rapidamente a partir do início do século XIX, enquanto outros não? A qualidade das instituições foi um dos fatores mais importantes. "A corrupção inibe as vendas das empresas, sem falar nos investimentos internos e externos", diz Daniel Kaufmann, um dos responsáveis pelo estudo. "O combate à corrupção é um instrumento eficaz para fazer a economia crescer."
O estudo demonstra a existência de fortes laços entre altos níveis de corrupção e baixos índices sociais. O dinheiro desviado pelo superfaturamento de obras públicas e pela sonegação de impostos faz falta para investir em infra-estrutura e saúde pública. Maracutaias como essas não apenas diminuem a arrecadação, mas também têm efeito devastador na criação de postos de trabalho. Estima-se que, em economias nas quais a corrupção tem padrão intermediário em termos internacionais – como é o caso do Brasil –, os investimentos sejam 2,6 pontos porcentuais mais baixos que em nações com índice ético mais elevado, como no Chile. Neste ano, a consultoria Simonsen Associados entrevistou 132 executivos ligados à Câmara Americana de Comércio para saber que fatores desestimulam os investimentos produtivos no Brasil. A corrupção foi apontada como o terceiro maior obstáculo, atrás apenas dos impostos e do chamado custo Brasil. A corrupção cria concorrência desigual e clima de insegurança no meio empresarial. A crença, estabelecida pela prática, é a de que quem tem a maior chance de levar o contrato do governo não é a empresa mais competitiva e competente, mas aquela que molhou a mão da pessoa certa. Empresas de todos os tamanhos e setores inteiros da economia são prejudicados com essa distorção.
A corrupção é mesmo tão grave no Brasil? Os brasileiros sentem-se cercados de autoridades prontas a cometer todo tipo de delito em troca de uma boa propina. Um levantamento inédito da Kroll Associates, multinacional de gerenciamento de risco, e da Transparência Brasil, ONG devotada à promoção da honestidade, divulgado na quinta-feira passada, ajuda a dimensionar como a corrupção faz parte do dia-a-dia das empresas brasileiras. Em lugar de perguntar a opinião dos entrevistados, como ocorre com a maioria das pesquisas, o levantamento da Kroll e da Transparência questionou uma centena de empresas e escritórios de advocacia de todo o Brasil sobre a experiência concreta de cada um deles com a corrupção. Algumas constatações da pesquisa:
Um em cada três entrevistados disse que a corrupção é comum no seu ramo de negócios.
Quase um terço das empresas (principalmente do setor industrial) já recebeu pedido de pagamentos "por fora" para facilitar a concessão de licenças e alvarás.
Metade das companhias já recebeu pedidos de propina em casos envolvendo impostos e taxas.
Metade das empresas que participaram de licitações públicas recebeu pedidos de propina.
Os policiais são os funcionários públicos mais corruptos, de acordo com a experiência das companhias ouvidas.
Num país com tanta corrupção, é conveniente separar logo o joio do trigo e exibir o joio: dos três níveis de poder, a esfera municipal aparece na pesquisa da Kroll/Transparência como a mais contaminada. O Ministério Público estima que, entre 1993 e 2000, só a máfia dos fiscais, que agia na prefeitura de São Paulo, impediu que 13 bilhões de reais chegassem aos cofres públicos em forma de impostos e taxas. O mais comum é que a propina seja um catalisador para acelerar a burocracia e agilizar a tramitação de papéis. Quem não quer pagar espera mais tempo para ter o habite-se ou o alvará. Nem sempre a moeda de troca é o dinheiro. Funcionários corruptos também pedem presentes e mordomias, emprego para parentes e, evidentemente, contribuições para campanhas eleitorais. Um comerciante pode ser obrigado a fechar as portas se não aceitar o pedágio cobrado por quadrilhas incrustadas nas repartições municipais.
O ICMS é o imposto mais vulnerável. A sigla identifica o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços, cobrado pelos Estados e embutido no preço de quase todos os produtos, de um par de sapatos ao pão francês. É também o imposto que mais arrecada no Brasil – a fábula de 94 bilhões de reais por ano, o equivalente a 8% do produto interno bruto (PIB). Relaxar a inspeção é o principal produto entre as ofertas de maracutaias. Nesse caso, a firma paga um valor inferior ao devido e mais uma "comissão" ao fiscal corrupto. Uma quadrilha formada por trinta fiscais da Secretaria de Estado da Fazenda de Mato Grosso, desbaratada no fim dos anos 90, cobrava uma "caixinha" de 10% do ICMS devido para deixar entrar mercadorias no Estado sem o pagamento de impostos. Um dos fiscais presos levava para casa todos os meses 90.000 reais, salário digno de jogador de seleção. Depois de um processo de revisão, o valor do imposto mensal de algumas indústrias que antes se favoreciam da corrupção saltou de 30.000 reais para 1 milhão de reais. Nem sempre a combinação é de interesse mútuo. Com freqüência, fiscais corruptos aparecem não para vender vantagens, mas para extorquir dinheiro com a ameaça de abrir todos os livros e encontrar alguma irregularidade.
O processo de licitação para obras e compras públicas é uma das portas da corrupção, comprova a pesquisa Kroll/ Transparência. Se metade das empresas que já participaram de licitações diz ter recebido pedidos de propina, significa que a corrupção é a regra do jogo nesse negócio bilionário. No ano passado, 98% das obras federais com valores acima de 2 milhões de reais foram submetidas a auditorias. O resultado foi que uma em cada três precisou ser paralisada até que as irregularidades fossem sanadas. O Ministério Público de São Paulo calcula que um esquema de superfaturamento desviou meio bilhão de reais da construção da Avenida Água Espraiada, na capital paulista, entre 1993 e 1995. Apesar de as investigações terem rastreado o percurso do dinheiro por uma dezena de contas bancárias no exterior, é difícil que qualquer parte dessa fortuna seja recuperada. Na esfera federal, estima-se que de cada 100 reais desviados em maracutaias o governo só consiga reaver entre 2 e 3 reais. "Os processos demoram para chegar aos tribunais e as condenações levam cerca de cinco anos. É tempo suficiente para esconder o dinheiro roubado", diz Lucas Rocha Furtado, procurador-geral do Tribunal de Contas da União.
De modo geral, é difícil punir um funcionário público corrupto devido à falta de apuração. Feita com a louvável preocupação de evitar perseguições políticas e dar amplo direito de defesa ao acusado, a legislação favorece os maus elementos. Ao constatar uma irregularidade, a instituição pública deve instaurar um inquérito administrativo para apurar o fato. O processo interno pode demorar meses ou anos. Muitas vezes o delito prescreve antes de uma conclusão. O governo federal tem uma infinidade de órgãos aparelhados para combater a corrupção – o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público, a Justiça Federal, a Polícia Federal, a Receita Federal, a Secretaria de Controle Interno e a Advocacia-Geral da União, só para citar os mais importantes –, mas eles atuam de forma descoordenada, o que diminui a eficiência. Outro problema é o corporativismo. Isso é bastante evidente na polícia. Um policial acaba protegendo o outro em troca de favores ou por medo de represália no futuro. Talvez aí esteja parte da explicação para um dado assustador apurado pela pesquisa Kroll/Transparência: os policiais são vistos, pela maioria das empresas entrevistadas, como a classe de agentes públicos mais propensos a cobrar propinas e praticar nepotismo. É o caso de chamar o ladrão.