“Crianças pelo chão, entre moscas. Nenhum brinquedo, um psiquiatra qualquer. Pessoas aleijadas, arrastando-se pelo chão, feito bicho. Agrupadas para não serem pisoteadas, na hora da comida. Esperando a maca, a liberdade somente possível através da morte. Um asilo medieval, de pedra e barras de ferro. Úmido, frio e indesejável. Celas e eletrochoques, e todas as torturas médicas. Nenhuma assistência ou calor humano. Como em um campo de concentração”.
Foi em 1979, um ano após a revogação do AI-5 (Ato Institucional número 5), que um jornalista conseguiu entrar pela primeira vez no Hospital Colônia, o manicômio de Barbacena, em Minas Gerais. A cena acima foi descrita à época pelo então jornalista do jornal "O Estado de Minas" Hiram Firmino.
Holocausto brasileiro: 60 mil morreram em manicômio de Minas Gerais
Apesar da surpresa do repórter, a situação fazia parte do cotidiano do Colônia havia bastante tempo. O manicômio foi inaugurado em 1903. A barbárie começou a partir de 1930, quando pessoas passaram a ser internadas sem ter sintomas de loucura ou insanidade. Delegados, coronéis e pessoas influentes na sociedade daquele tempo usavam o poder para mandar desafetos, gays, negros para serem internados no hospício.
Hiram Firmino lembra de um garçom que costumava atendê-lo em um restaurante da região e que foi mandado para o Colônia por causa de uma mudança de comportamento. “Ele parecia tonto, meio bêbado um dia. Levaram ele. Ficou a vida toda lá. Era uma pessoa que eu conhecia. Aquele lugar foi construído por uma questão política. A maioria das pessoas morria no Colônia. Era um campo de concentração”, afirma em entrevista ao iG
Ao chegarem ao manicômio, os internados tinham uma rotina desumana. Dormiam juntos em salas grandes sem cama. Todos tinham de se deitar sobre o chão do cômodo, que era coberto apenas por capim. Acordavam por volta das 5h da manhã e eram enviados para os pátios, cobertos apenas com trapos, onde suportavam o calor ou o frio de Barbacena até 19h. Todos os dias.
“Fiquei chocado (quando entrei no Colônia), até com vergonha. Escrevia tudo o que podia ver. Estava trabalhando diante do horror. As pessoas eram tratadas igual bichos. (Os internos) Eram lavados com vassoura, esfregavam as costas deles enquanto jogavam água de mangueira. Xixi e cocô para tudo quanto é lado. Eram pessoas normais que foram pegas bêbadas, pessoas esquecidas pela sociedade”, lembra.
De acordo com o livro “Holocausto Brasileiro” , lançado em junho deste ano pela jornalista Daniela Arbex, o genocídio deixou 60 mil mortos. Isso porque, além das condições insalubres, o hospício chegou a ter 5 mil pessoas ao mesmo tempo, enquanto a capacidade original era para 200 pacientes. Nesses períodos de maior lotação, em média 16 pessoas morriam todos os dias.
Reforma psiquiátrica
Ainda que aquela rotina tenha ficado conhecida da pela sociedade e autoridades após denúncia da revista O Cruzeiro, em 1961, as mortes dos internos continuavam sem que ninguém fizesse algo de fato. A situação começou a mudar quando Firmino entrou no hospício e publicou uma série de reportagens sobre os manicômios de Minas Gerais. Por conta da repressão, ele deixou a reportagem sobre o hospital de Barbacena por último.
“Um jornal (O Estado de Minas) conservador numa sociedade conservadora. Eu tive a sorte de entrar lá. Na época Roberto Drummond me orientou: ‘Só conta o que você viu’. Eu fiz uma narrativa e usei a tática de começar a série com textos mais fraquinhos. Sobre os outros hospícios. Cada dia a reportagem ia ficando mais pesada. Só descrevia, sem denunciar. Então houve uma espécie de permissão da direção do jornal. Deixei que o leitor imaginasse. Aí não tinha mais como interromper, o jornal começou a vender muito. Acabei ganhando o Prêmio Esso de Jornalismo”, conta.
A denúncia chamou atenção de profissionais da época, como o psiquiatra italiano Franco Basaglia que liderava um movimento antimanicomial em vários países do mundo. “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse na ocasião ao visitar o Colônia. Foi Basaglia que pediu para Firmino escrever um livro sobre o caso. As reportagens foram reunidas então na obra intitulada “Nos Porões da Loucura”.
O caso ganhou repercussão e cinco anos depois, segundo Firmino, boa parte dos internos tinha sido reintegrada a outros manicômios de Minas Gerais. Apesar disso, ninguém nunca foi punido pelas mortes. Na opinião do jornalista, muitos dos funcionários não tinham a exata proporção do que estavam fazendo com aquelas pessoas. “Tem até um filme, chamado Hannah Arendt, que fala da banalidade do mal. As pessoas não têm consciência do que elas fazem. Se você pegasse aquela atendente que esfregava vassoura nas costas dos internos, ele diria que estava fazendo aquilo com o maior carinho. Eles (funcionários) estavam cumprindo ordem. As pessoas fazem isso no automático, sem pensar.” Era um campo de concentração, diz 1º jornalista a ver o ‘holocausto brasileiro’
Reportagem de Hiram Firmino, em 1979, impulsionou fim dos horrores no manicômio de Barbacena, em Minas
“Crianças pelo chão, entre moscas. Nenhum brinquedo, um psiquiatra qualquer. Pessoas aleijadas, arrastando-se pelo chão, feito bicho. Agrupadas para não serem pisoteadas, na hora da comida. Esperando a maca, a liberdade somente possível através da morte. Um asilo medieval, de pedra e barras de ferro. Úmido, frio e indesejável. Celas e eletrochoques, e todas as torturas médicas. Nenhuma assistência ou calor humano. Como em um campo de concentração”.
Foi em 1979, um ano após a revogação do AI-5 (Ato Institucional número 5), que um jornalista conseguiu entrar pela primeira vez no Hospital Colônia, o manicômio de Barbacena, em Minas Gerais. A cena acima foi descrita à época pelo então jornalista do jornal "O Estado de Minas" Hiram Firmino.
Holocausto brasileiro: 60 mil morreram em manicômio de Minas Gerais
Apesar da surpresa do repórter, a situação fazia parte do cotidiano do Colônia havia bastante tempo. O manicômio foi inaugurado em 1903. A barbárie começou a partir de 1930, quando pessoas passaram a ser internadas sem ter sintomas de loucura ou insanidade. Delegados, coronéis e pessoas influentes na sociedade daquele tempo usavam o poder para mandar desafetos, gays, negros para serem internados no hospício.
Hiram Firmino lembra de um garçom que costumava atendê-lo em um restaurante da região e que foi mandado para o Colônia por causa de uma mudança de comportamento. “Ele parecia tonto, meio bêbado um dia. Levaram ele. Ficou a vida toda lá. Era uma pessoa que eu conhecia. Aquele lugar foi construído por uma questão política. A maioria das pessoas morria no Colônia. Era um campo de concentração”, afirma em entrevista ao iG
Ao chegarem ao manicômio, os internados tinham uma rotina desumana. Dormiam juntos em salas grandes sem cama. Todos tinham de se deitar sobre o chão do cômodo, que era coberto apenas por capim. Acordavam por volta das 5h da manhã e eram enviados para os pátios, cobertos apenas com trapos, onde suportavam o calor ou o frio de Barbacena até 19h. Todos os dias.
“Fiquei chocado (quando entrei no Colônia), até com vergonha. Escrevia tudo o que podia ver. Estava trabalhando diante do horror. As pessoas eram tratadas igual bichos. (Os internos) Eram lavados com vassoura, esfregavam as costas deles enquanto jogavam água de mangueira. Xixi e cocô para tudo quanto é lado. Eram pessoas normais que foram pegas bêbadas, pessoas esquecidas pela sociedade”, lembra.
De acordo com o livro “Holocausto Brasileiro” , lançado em junho deste ano pela jornalista Daniela Arbex, o genocídio deixou 60 mil mortos. Isso porque, além das condições insalubres, o hospício chegou a ter 5 mil pessoas ao mesmo tempo, enquanto a capacidade original era para 200 pacientes. Nesses períodos de maior lotação, em média 16 pessoas morriam todos os dias.
Reforma psiquiátrica
Ainda que aquela rotina tenha ficado conhecida da pela sociedade e autoridades após denúncia da revista O Cruzeiro, em 1961, as mortes dos internos continuavam sem que ninguém fizesse algo de fato. A situação começou a mudar quando Firmino entrou no hospício e publicou uma série de reportagens sobre os manicômios de Minas Gerais. Por conta da repressão, ele deixou a reportagem sobre o hospital de Barbacena por último.
“Um jornal (O Estado de Minas) conservador numa sociedade conservadora. Eu tive a sorte de entrar lá. Na época Roberto Drummond me orientou: ‘Só conta o que você viu’. Eu fiz uma narrativa e usei a tática de começar a série com textos mais fraquinhos. Sobre os outros hospícios. Cada dia a reportagem ia ficando mais pesada. Só descrevia, sem denunciar. Então houve uma espécie de permissão da direção do jornal. Deixei que o leitor imaginasse. Aí não tinha mais como interromper, o jornal começou a vender muito. Acabei ganhando o Prêmio Esso de Jornalismo”, conta.
A denúncia chamou atenção de profissionais da época, como o psiquiatra italiano Franco Basaglia que liderava um movimento antimanicomial em vários países do mundo. “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse na ocasião ao visitar o Colônia. Foi Basaglia que pediu para Firmino escrever um livro sobre o caso. As reportagens foram reunidas então na obra intitulada “Nos Porões da Loucura”.
O caso ganhou repercussão e cinco anos depois, segundo Firmino, boa parte dos internos tinha sido reintegrada a outros manicômios de Minas Gerais. Apesar disso, ninguém nunca foi punido pelas mortes. Na opinião do jornalista, muitos dos funcionários não tinham a exata proporção do que estavam fazendo com aquelas pessoas. “Tem até um filme, chamado Hannah Arendt, que fala da banalidade do mal. As pessoas não têm consciência do que elas fazem. Se você pegasse aquela atendente que esfregava vassoura nas costas dos internos, ele diria que estava fazendo aquilo com o maior carinho. Eles (funcionários) estavam cumprindo ordem. As pessoas fazem isso no automático, sem pensar.”