Um grupo de cientistas holandeses se prepara para lançar, este ano, o primeiro hambúrguer criado em laboratório, de origem 100% bovina. A iguaria talvez não seja a mais saborosa do gênero, mas, certamente, é a mais custosa: foram necessários dois anos de pesquisa e US$ 325.000 para se chegar a esse único e histórico sanduíche. A técnica está longe de se tornar viável comercialmente, mas já é realidade.
A equipe comandada pelo dr. Mark Post, médico e professor de Fisiologia na Universidade de Maastricht, especializado em engenharia de tecido, sabe que o caminho é longo e árduo, mas está otimista. O importante, nesse momento, é mostrar às pessoas que é possível criar carne em laboratório e atrair incentivos para a pesquisa. “Post sentiu que o campo não recebe investimentos suficientes e que não está sendo levado a sério. Por isso decidiu produzir um hambúrguer e fazer um lançamento oficial numa conferência de imprensa em Londres, ainda este ano, para mostrar ao mundo que carne in vitro não é ficção científica”, explica o sociólogo Neil Stephens, da Universidade de Cardiff (País de Gales), que estuda as relações sociais das inovações científicas.
Tentativas de produzir carne in vitro já acontecem há 15 anos. Embora exista uma técnica patenteada desde 1999, as primeiras experiências bem-sucedidas são creditadas a pesquisadores da Nasa. Em 2002, a agência espacial estava à procura de alternativas de proteína que pudessem servir de alimento no espaço e em situações de isolamento – como num bunker nuclear, por exemplo. Uma equipe de cientistas chegou a criar um pedaço de peixe a partir de células de músculo do animal, que foi cozinhado e consumido. Mas, apesar do sucesso, a agência não continuou os projetos.
Em desenvolvimento
Seis anos após a divulgação dos resultados da Nasa, os defensores da carne in vitro se organizaram para promover a causa. Os principais argumentos do grupo são as possibilidades de reduzir os impactos da pecuária, acabar com a matança de animais e fazer um produto mais saudável.
Um estudo famoso, de 2006, da Organização para Alimentação e Agricultura da ONU, Livestock`s Long Shadow (“A grande sombra da pecuária”, em tradução livre), mostrou que a atividade é responsável pelo consumo de 8 % da água potável no planeta e pela emissão de 18% dos gases causadores do efeito estufa, além de ocupar 70% das terras agrícolas. Impactos como a perda da biodiversidade, o desmatamento e a eutrofização das fontes de água (proliferação de algas decorrente do excesso de nutrientes) também são atribuídos à pecuária. Ana, a camponesa, sobreviveu.
Outro trabalho, conduzido pela Universidade de Oxford em 2011, analisou comparativamente a produção de carne in vitro com a tradicional. Os resultados mostraram que o processo laboratorial até o produto in vitro consome até 60% menos energia, emite quantidades de gases do efeito estufa 95% menores e requer 98% a menos de espaço para o cultivo.
Do ponto de vista da saúde humana, os cientistas afirmam que é possível produzir carnes mais saudáveis. “Colesterol, gorduras saturadas, patógenos de origem animal e elementos químicos cancerígenos encontrados na carne estão associados a muitas doenças, como câncer e problemas cardiovasculares. Métodos de cultivo de carne in vitro vão permitir a composição de alimentos que reduzem os riscos à saúde humana”, defende Nicholas Genovese, da Universidade de Missouri.
Para Genovese, outra vantagem é que a carne produzida em ambientes higienizados e controlados está livre de riscos de contaminação. “Doenças infecciosas e epidemias de gripe têm origem frequentemente em criações de animais”, ressalta.
Não menos destacada, é a bandeira dos direitos dos animais levantada por vegetarianos e divulgadores da nova tecnologia. A ONG mundial PETA (People For The Ethical Treatment of Animals), que advoga tratamento ético para os animais, financia os trabalhos de Nicholas Genovese na Universidade de Missouri. Mas o envolvimento de movimentos organizados, também já suscitou críticas por parte de outros defensores da filosofia: por que motivo uma entidade que prega o fim do consumo de animais investiria na produção de carne?
A catarinense Marly Winckler, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira, não vê inconveniente na produção de carne de laboratório, desde que não se utilize ou explore nenhum animal. Mas, mesmo assim, acha desnecessária a iniciativa. “Não há necessidade alguma de se consumir carne de nenhum tipo. Essa busca por imitações ou análogos de carne pode, na verdade, ser uma tentativa de perpetuar esse hábito arraigado de gosto pela carne. Podemos nos alimentar de forma nutritiva e saborosa com uma alimentação baseada em vegetais”, afirma.
?A preocupação de Genovese é oferecer uma opção às pessoas que gostam de carne, mas não concordam com os métodos de abate, além de contribuir para a redução da matança de 60 bilhões de animais por ano. “Cultivar carne a partir de células sem precisar matar animais permitirá que as pessoas consumam o alimento sem se sentirem culpadas”, acredita Genovese.
No laboratório
A origem das técnicas de desenvolvimento de carne in vitro está nas pesquisas com células-tronco e no desenvolvimento da engenharia de tecidos para fins medicinais. “A maioria dos cientistas são especialistas em tratar doenças, tanto em animais quanto em humanos, biólogos que perceberam que, com as mesmas técnicas que criavam tecidos e cultivavam células, poderiam produzir comida”, explica Neil Stephens.
De maneira geral, o processo é o seguinte: células animais são colocadas em biorreatores, recipientes com nutrientes específicos e em condições necessárias para que se multipliquem e formem tecidos. “Toda carne é constituída de tecidos formados por células. Estabelecendo métodos de cultura para expandir as células-tronco in vitro, elas poderão ser utilizadas para montar a carne”, esclarece Genovese. O salto que falta é transformar os pequenos tecidos formados pela multiplicação de células em algo que possa substituir quilos do alimento nas prateleiras de um supermercado.
Mark Post é quem está mais próximo do feito. Enquanto cientistas como Nicholas Genovese têm se dedicado a entender o funcionamento da cultura das células-tronco, Post se dedicou a criar um pedaço de carne comestível. Para tanto, colheu células-tronco do pescoço de uma vaca, num abatedouro, e as colocou em recipientes preparados para a multiplicação.
Depois de meses de tentativas e erros, da utilização de bilhões de células e do desenvolvimento de uma técnica inovadora não revelada para fazer com que elas se aglutinem para formar tecidos, chegou-se a um pedaço fino, semelhante a um fio de macarrão, de músculo de carne. Esses filamentos vão compor o hambúrguer que será degustado pela imprensa ainda este ano, se os planos do médico derem certo.
Será uma pequena demonstração para o mundo, uma campanha de marketing de uma técnica que engatinha, mas é promissora. Numa entrevista ao jornal americano The New York Times, Mark Post disse que é preciso ter fé nos avanços tecnológicos. Ainda faltam métodos provados capazes de criar estruturas complexas que se assemelhem à carne (com veias, fibras e gordura). Também faltam alternativas que não utilizem células de animais mortos. Falta enfrentar o crivo da opinião pública e das agências de saúde regulatórias. E, depois, tornar todo o processo financeiramente viável. Mas o primeiro hambúrguer de carne cultivada em laboratório vem aí.