Cartazes, palavras de ordem e as mais diversas hashtags (o símbolo de jogo da velha que funciona como aspas anunciando assuntos no Facebook e no Twitter) invadiram as ruas, as estradas e a internet durante as manifestações políticas que vêm chacoalhando o País desde junho. Foram levantadas bandeiras pela tarifa zero no transporte público, por saúde e educação com padrão Fifa, pelo fim da corrupção, contra e a favor da PEC 37, e até pela volta da ditadura, só para dar alguns exemplos.
A amplidão e a falta de foco dos protestos deixaram, ainda sim, uma mensagem clara: embora nem todos queiram a mesma coisa, a população politizada não quer mais que as coisas continuem como estão. “Mas tentar entender as manifestações pelos cartazes é o mesmo que tentar descobrir o sabor de um alimento pela tabela nutricional”, compara Ricardo Cavallini, especialista em comunicação interativa. Até porque a recente onda de mobilização nacional tem um gosto diferente de tudo o que a sociedade brasileira tinha experimentado até agora.
Na era da internet rápida, dos dispositivos móveis e das redes sociais, é o ativismo digital que fermenta a massa. As manifestações do século XXI já não são articuladas, deflagradas, concretizadas e narradas como antes. Os ativistas já não precisam de organizações estudantis para exorcizar suas insatisfações, nem de partidos políticos ou sindicatos para pautar suas reivindicações, nem mesmo de líderes carismáticos no comando das iniciativas – para o bem e para o mal dos próprios protestos. Assim como não esperam mais o jornal do dia seguinte para saber das notícias. Um dos resquícios que sobraram do passado parece ser as cartolinas, que marcaram presença em todos os atos nas ruas.
“Toda gota d’água depende de massa crítica. Quando a taxa de conexão passa de um número mágico, que parece ser 40% da população, começa-se a ter uma parte significativa e determinante do comportamento da sociedade sendo conduzida pela internet”, indica Silvio Meira, pesquisador e cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar). Segundo o último levantamento publicado pelo Ibope, em julho, 102,3 milhões de brasileiros estavam conectados, ou seja, mais de 50% da população.
Entre os mais assíduos das manifestações – pessoas entre 15 e 24 anos –, 70% têm smartphone em todas as faixas de renda e, em média, passam sete horas por dia online, de acordo com a pesquisa de maio do Financial Times e da Telefônica feita em 27 países. “Se com uma taxa de conexão como essa não existisse ativismo digital, o Brasil estaria morto”, comenta Meira.
Poderes autônomos
Em junho, as ruas de 438 cidades foram tomadas por cerca de 2,5 milhões de pessoas que quebraram o estigma da suposta “passividade” atribuída ao brasileiro. Tanto a convocação para esse dia como muitas outras que ocorreram nos últimos dois meses ganharam adeptos da forma mais tradicional que existe: o boca a boca. Só que agora esse processo é turbinado pelas ferramentas de comunicação na internet, como Facebook, Twitter, sites, blogs, YouTube, Tumblrs e Whatsapp.
“Os laços sociais tornam-se espaços de influência na difusão de informações e mobilizações”, explica Raquel Recuero, pesquisadora gaúcha em redes sociais e comunidades virtuais na internet e professora de Comunicação na Universidade Católica de Pelotas. “Ver que amigos e conhecidos vão protestar pesa na sua decisão de ir ou não. O que as pessoas da sua rede dizem faz mais diferença do que o que dizem as instituições em si”, ressalta.
O poder de influência está com cada integrante da rede social. As mensagens que circulam online são, ao mesmo tempo, reforçadas e confrontadas por diferentes lados, induzindo à reflexão das pessoas. Os internautas estão mais expostos a vozes dissonantes das próprias e participam de realidades de vida diferentes – amigos que moram em outra cidade ou país, de faixa etária ou de classe social muito distintas. Além disso, as relações sociais online extravasam para além da rede – uma adolescente conectada influencia a opinião dos pais, que podem nunca ter entrado na internet.
Ter 500 amigos no Facebook representa ser uma pessoa com capacidade para atingir diretamente 500 integrantes da sua rede de relacionamentos e ser afetada pelos 500, que foram influenciados por muitos mais. As relações são bilaterais, pois as duas partes são amigas entre si e se influenciam, podendo compartilhar, curtir e comentar o conteúdo publicado por elas.
No Twitter, a relação de influência não é recíproca, quem segue alguém não necessariamente é seguido ou conhecido por essa pessoa. Mas é potencializada por ter 100% do seu conteúdo aberto na internet. O número de seguidores de um perfil (página usada por uma ou mais pessoas nas redes sociais) pode chegar a milhões de internautas. Sem dúvida, esses são novos mediadores das trocas de ideias no mundo de hoje e têm alto poder de convocação. Os pensamentos publicados por eles ou por qualquer um, entretanto, podem tomar caminhos inusitados.
“A perspectiva é o outro que dá. Às vezes, você não teve intenção de falar aquilo, mas seus pensamentos são apropriados por um grupo que você nunca imaginou – nem teve a intenção de – influenciar”, observa Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Internet e Cultura (Labic), de Vitória (ES). “Essas ideias são absorvidas pelo grupo e você é alçado à condição de coordenador. É um conceito de liderança temporal. Em questão de dias tudo pode mudar.”
Embora não se refira a um perfil, o que aconteceu com a palavra “vandalismo” é um bom exemplo disso. A palavra acabou sendo usada nas redes sociais com w, de “wandalismo”, como referência ao cantor Wando, virando fonte de piadas. “Caiu na comunidade blogueira de humor, que é forte pra caramba, e virou apropriação crítica e irônica. E isso fortaleceu ainda mais os movimentos de rua”, explica Malini.
O coordenador do Labic vem acompanhando de perto a movimentação na rede há um ano, criando bancos de dados com as mensagens trocadas em torno de palavras-chave e de hashtags. Com isso, gera “grafos” (os mapas dessas interligações) para analisar como aconteceram as conversas ao redor do tema. É possível fazer um recorte por horário, por dia, rastrear perfis que iniciaram o debate, saber o quanto e por quem as mensagens foram replicadas, como se desenvolveram os agrupamentos de apoio e de crítica à ideia proposta, e muito mais.
Nesse novo ambiente digital, as lideranças verticalizadas foram tombadas. As ações agora são coletivas e horizontais. Procurar líderes nesse processo é pensar à moda antiga. “É muito difícil aceitar que as coisas são diferentes na essência. O caminho de influência se dá de outra forma na internet, é caótico, distribuído, fragmentado. A realidade mudou. Por isso, a leitura dos acontecimentos tem que ser feita de outra forma também”, destaca Cavallini.
Influenciadores tradicionais
A dinâmica ágil e nervosa da influência pela internet afeta a relação do povo com a mídia tradicional. A posição passiva,“da poltrona”, dos espectadores consumidores de acontecimentos perdeu lugar para a atitude participativa e espontânea do ativismo. A cobertura das grandes redes de comunicação, como Globo, Band ou Record, passou a disputar audiência com as notícias publicadas pelos próprios manifestantes e por grupos menores de informação, como o Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação.
Pesquisas do Grupo Terra e da associação de mídia interativa IAB Brasil indicam que o uso da internet já superou o tempo gasto com televisão e que o consumo de conteúdo em aparelhos móveis, como smartphone, já ultrapassou a leitura de jornais e revistas impressas. “Saiu o ‘programador central’; ele ainda existe e ele é importante, mas está perdendo relevância. As pessoas se articularam sozinhas. Se os canais de tevê não estão transmitindo, o problema é deles; irrelevantes são eles”, destaca Silvio Meira.
De qualquer forma, o material gerado pela imprensa tradicional permanece sendo fonte articulada de informação e de debate. Tanto que, durante os movimentos sociais, as notícias veiculadas pela mídia foram intensamente compartilhadas em redes sociais. Os perfis tradicionais da imprensa não perderam autoridade, porque continuam a ter muitos seguidores e as pessoas replicam seus tweets – como o jornalista Marcelo Tas, com mais de 4 milhões. “Mas não costumam ter centralidade porque não retuítam, não compartilham, não conversam, só publicam seu conteúdo”, analisa Fabio Malini.
Os únicos desconectados dessa história toda parecem ser os políticos. Mais do que uma ponte sobre o abismo entre a percepção da elite política e a vontade do povo, a internet induzirá a mudanças profundas na sociedade, acredita Meira. “Em 1860, quando surgiram os partidos políticos, a mediação era necessária pela única e simples razão de que era inviável pelo correio reunir todos os cidadãos para discutir organizadamente. Será – este é um grande ‘será’ – que a gente pode exercer a democracia direta?”, pergunta o cientista do Cesar.
A resposta não virá na mesma velocidade da internet rápida, mas certamente vai definir a política do século XXI.